A HIPOCRISIA DO DISCURSO DE PROPRIEDADE INTELECTUAL: A Criação, a Apropriação e a Perda de Pensamento Crítico

  A HIPOCRISIA DO DISCURSO DE PROPRIEDADE INTELECTUAL: A Criação, a Apropriação e a Perda de Pensamento Crítico

No pano de fundo, o adorável Studio Ghibli — do para sempre Hayao Miyazaki.

Vivemos tempos em que a discussão sobre a ética da inteligência artificial, a apropriação do trabalho criativo e os limites da propriedade intelectual parecem ecoar em todos os cânticos da sociedade. Mas, sob a luz fria desse debate, muitas verdades inconvenientes são obscurecidas por discursos artificiais e distorcidos. Entre elas, a própria noção de "propriedade intelectual" raramente é questionada em sua essência. E talvez, nesse silêncio cômodo, resida um dos paradoxos mais reveladores do nosso tempo.

O que significa, afinal, "criar"? Quem pode, com legitimidade, reivindicar a propriedade de uma ideia? 
O sistema em que vivemos funciona em um ciclo interminável de apropriação, onde poucos se investem do direito de possuir o que deveria pertencer ao domínio comum, como a tecnologia, os recursos, e as oportunidades que o apadrinhamento traz. No meio dessa engrenagem, as conquistas de muitos — especialmente de mulheres e de grupos historicamente marginalizados — são sistematicamente apagadas, desvalorizadas ou abertamente roubadas.

Mas a criatividade nunca foi um ato isolado. Ela nasce do entrelaçamento de histórias, culturas e influências. A ideia de uma criação pura, original e autônoma é um mito conveniente, um ideal romântico que ignora a interconexão fundamental da experiência humana. Como afirmar que uma obra é "inteiramente original" quando ela é, na verdade, um mosaico de inspirações, memórias e referências?

Nesse contexto, a inteligência artificial surge como o espelho desse paradoxo. Sua eficiência em processar e sintetizar informações levanta temores sobre o futuro da criação humana. Mas a verdadeira questão não é a máquina em si — e sim nossa própria definição do que significa ser criativo. 
A IA pode compilar dados, mas não possui o olhar subjetivo, a intuição, a sensibilidade que transforma uma obra em um fenômeno singular.
O que nos leva ao cerne da questão: não é a inteligência artificial que ameaça a criatividade, mas sim a erosão sistemática do pensamento crítico. A pressa pelo conteúdo imediato, a redução do espaço para a reflexão, a mercantilização da arte e da cultura nos conduzem a um estado de anestesia intelectual, onde questionar parece um luxo dispensável. Nos tornamos, em grande parte, uma sociedade domesticada, que consome sem discernimento, que aceita sem questionar e que repete sem compreender.


Aqui, Miyazaki e o Studio Ghibli surgem como um fôlego de resistência. Através de suas animações, descobrimos um universo onde a arte não é apenas conteúdo, mas sim expressão da alma humana. Em cada cena, cores e formas transcendem o visual; revelam valores profundos, capturam o sublime mesmo na ingenuidade das crianças, elevam a emoção a um patamar de poesia visual. Por isso, nós — fãs incansáveis do Studio Ghibli — revisitamos essas obras repetidamente: porque nelas reside um senso autêntico de criação e pertencimento, tão raro no mundo atual.

A hipocrisia da "propriedade intelectual" está, pois, na contradição entre o discurso e a prática. Enquanto se clama pela proteção da criação, silencia-se os criadores. Enquanto se vangloria a originalidade, encobre-se o roubo sistemático das vozes mais vulneráveis. A verdadeira questão não está em quem detém os direitos, mas sim em quem tem a chance de ser ouvido.



O chamado, portanto, é para todos aqueles que ainda preservam a capacidade de pensar criticamente. Resgatemos o direito de questionar, de refletir, de desafiar os dogmas estabelecidos. Porque criar não é apenas executar: é escolher conscientemente cada passo, é dar voz ao que foi silenciado, é devolver à criatividade seu papel essencial — não como mercadoria, mas como uma força que transforma e transcende.

O SER se constroi através do olhar pensante, de suas referências e, sobretudo, de suas reflexões. O conteúdo não existe de forma independente: está sempre sujeito ao sujeito — ao humano que o cria. Quando há consistência, profundidade e autenticidade nesse processo, a substituição por máquinas se torna impossível. A inteligência artificial pode reproduzir padrões, mas não pode experimentar o mundo. Pode processar dados, mas não pode ser. O que é genuíno, o que nasce do encontro entre vivência e pensamento, escapa à automatização. Mas a mediocridade — essa, sim, pode ser substituída sem perda. A verdadeira questão não é o que a IA pode fazer, mas se nós, enquanto humanos, continuaremos a pensar e sentir de forma que nada possa nos substituir.


Cordialmente,

Angela Camolese

Comentários

Postagens mais visitadas